terça-feira, 17 de outubro de 2017

Mãe! (2017)


Mãe! é o segundo filme do ano que vem com um ponto de exclamação de brinde no título. O primeiro foi Corra!, em que, pelo menos, havia uma urgência em seu comando: a urgência da fuga. No filme de Darren Aronofsky que, por puro preciosismo, também sugere-se ser inteiramente escrito sem letra maiúscula, a pontuação não está apenas no título. Cada cena parece terminar com o mesmo sinal, porém, se é de incredulidade positiva ou negativa, ou exasperação, fica ao gosto do freguês.

Em sua obra anterior, Noé, o diretor adaptou uma história da Bíblia. Aqui, parece que gostaria de adaptar o livro inteiro e acaba trazendo ao seu filme mais alegorias do que desfile de escola de samba do Rio de Janeiro.

A vantagem e o problema de uma ou várias alegorias é que cada um interpreta ao seu modo, de acordo com seus referenciais. Aqui, no entanto, Aronofsky – um sujeito pouco dado a sutilezas, basta ver o clímax de Réquiem para um sonho, no qual todos os personagens se dão muito explicitamente mal – não deixa margem a escolhas interpretativas ou elucubrações. O psicologismo barato de Cisne Negro, que, ao menos, tinha algo de divertido, embora superficial e surrado, persiste nas quase duas horas deste filme. Tudo isso acoplado a lições da aula de catecismo.

Talvez nem devamos chamar de personagens as figuras que habitam esse pesadelo, porque estão aquém de uma individualização burguesa, transformando-se em arquétipos. O “nome” pelo qual essas criaturas atendem está nos créditos finais. Jennifer Lawrence é chamada de Mãe (estranhamente sem exclamação, ora vejam!), seu marido, não é o Pai (ou Pai!), mas sim Ele. Ed Harris é o Homem e Michelle Pfeiffer, a Mulher. Os irmãos Brian e Domhnall Gleeson interpretam (quanta ironia!) um par de irmãos ensandecidos. Aronofsky, que também assina o roteiro (mas não credita nenhum apóstolo como coautor), cria uma fantasia atemporal com piscadelas para Luis Buñuel, Roman Polanski e qualquer outro autor que passar na frente do cinema, pois o cineasta pretende mostrar seu vasto repertório de referências.

Um dos problemas de explorar um vasto repertório é a perda da historicidade e o esvaziamento de significados, fora o exibicionismo gratuito – coloquemos aqui, então, Aronosfky como um cineasta pós-moderno, cuja obra apenas patina na tentativa de figurar o nosso presente, ao contrário de, digamos, Terrence Malick, cada vez mais incompreendido em seus retratos certeiros do nosso tempo. De Buñuel, por exemplo, mãe! toma emprestado o clima surreal e alguns motivos de O Anjo Exterminador. Na comédia cínica do espanhol, no entanto, havia uma clara sátira à elite de seu país diante da vitória do franquismo e da derrota das forças populares, e seu enclausuramento sem saída. Com um pouco de boa vontade (ou talvez muita) é possível pensar no filme do americano como uma leitura dos EUA da Era Trump, cujo governo, cada vez mais estapafúrdio, isola o seu país do restante do mundo. Há, no entanto, uma grande diferença entre os dois países e suas respectivas posições no jogo geopolítico de seu tempo. E, por fim, Aronofsky parece alheio demais para ir tão fundo numa apreensão política do presente – embora ele tente fazê-la por pinceladas mais amplas. Não é de todo exagerado dizer que o filme apresenta – sem nunca explorar direito – a questão dos refugiados e imigrantes contemporâneos. Outra leitura clara em mãe! é a de um pesadelo ecológico, no qual a Mãe Terra, cansada de anos e anos de exploração, está esmaecendo, mas antes de acabar completamente, pode destruir aqueles que a maltrataram e, assim, renascer.

Jennifer, uma espécie de bendita entre as mulheres, cuida da reconstrução da casa para que o marido, ora chamado de O Poeta, possa criar sua obra – ou seria Obra? Ele, porém, enfrenta um bloqueio criativo ao qual nem essa musa é capaz de por um fim. Ela passa o tempo reconstruindo a casa, isolada no meio do nada de lugar nenhum, que foi destruída num incêndio. Aliás, a primeira imagem do filme é uma mulher em chamas, e a primeira palavra é “Baby” – que pode ser um vocativo carinhoso ou um substantivo. Um bebê, aliás, aparecerá a certa altura. Antes disso, chegam o Homem, que se revela um grande fã do escritor, e logo depois sua mulher um tanto mesquinha – e a melhor figura dentro do filme – que tem uns conselhos não-requisitados a fornecer à protagonista. Quando Harris e Michelle saem de cena, suas ausências são sentidas.

Algumas das falas mais marcantes da Mãe consistem em Jennifer gritando, até literalmente perder a voz, para as pessoas saírem de sua casa. Há outros momentos também em que ela briga insistentemente com as pessoas que se sentam na pia que não está chumbada. São os convidados de um funeral/rave que acontece na primeira metade do filme. Se isso parece bizarro, é porque o longa não chegou ainda à sua parte final. Há um momento de calmaria e sexo pudico entre os dois apocalipses que marcam a trama. É também quando a inspiração novamente agracia o Poeta que, ainda nu, corre em busca de uma caneta, ou melhor, “Caneta! Uma Caneta!!”, tal qual Ricardo III requisitando um cavalo.

Jennifer reconstrói a casa – escolhe e aplica a tinta e o gesso nas paredes –, um Paraíso não-tão-perdido, dada a facilidade com que desconhecidos batem à sua porta. A fotografia – assinada pelo parceiro contumaz de Aronofsky, Matthew Libatique - é sempre escura, causando um contraste com as poucas externas saturadas de luz natural, e com muitos closes do rosto vilipendiado da atriz. A trilha sonora, cortesia de Jóhann Jóhannsson, consiste em ruídos que evidenciam o pesadelo barroco criado pelo diretor, num filme que não apenas olha para o próprio umbigo como também tenta o tempo todo chamá-lo de Grande Arte!, impregnando-o de significados e revelações que, quando eclodem, já tinham sido decodificadas.

Apesar das semelhanças com O Bebê de Rosemary – e em alguns momentos o cabelo de Bardem é idêntico ao de John Cassavetes naquele filme –, mãe! não é necessariamente um filme sobre maternidade ou gravidez – embora também possa haver nele uma crítica ao patriarcado –, mas sobre o sadismo da criação artística. É também sobre a insanidade da Sociedade do Espetáculo (lide com essa, Guy Debord), na qual um poeta é alçado à figura maior – com centenas de pessoas invadindo sua casa em busca de um mimo para guardar de recordação. Nem Lord Byron conseguiu tal feito, embora, conta-se, tenha vendido 10 mil cópias de um poema seu em um dia – mas era 1814.

Ambição e pretensão são, a grosso modo, a mesma coisa, só mudando a valência conforme os gostos e expectativas de quem observa. Enfim, não cabe ao artista escolher ser ambicioso ou pretensioso – são leituras que vêm do público. Ambição (que pode ser bem ou mal-sucedida, mas, geralmente, é um sentimento positivo em se tratando de arte) é fazer um filme sobre a degradação humana mediada por diversos tipos de drogas. Pretensão é fazer uma alegoria com motivos religiosos sobre o mal-estar da contemporaneidade.

(Mother! - 2017)

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