domingo, 6 de janeiro de 2013

A Noite Americana (1973)


Em uma cena típica de “A Noite Americana”, o diretor Ferrand (interpretado por François Truffaut) joga no chão uma pilha de suas últimas aquisições de livros sobre filmes (Bresson, Rosselini, Hitchcock), enquanto o tema musical de Georges Deleurue é tocado através do fone de um aparelho telefônico. A mistura de detalhes do cotidiano com rompantes inesperados e cuidadosamente contidos de lirismo é Truffaut no que ele tem de mais essencial.

“A Noite Americana” é uma declaração de amor de Truffaut ao processo de filmar. Em uma escolha controvertida para o período pós-1968, ele optou pelo cinema clássico, centrado em estúdios e genérico como premissa, em vez da nouvelle vague. A ênfase está na criação de filmes como ofício e não arte (ninguém pensaria que o tolo filme-pipoca de Ferrand, “Meet Pámela”, é uma obra-prima). Além disso, a ênfase é menos no que é produzido do que no processo coletivo que leva até lá. Truffaut pinta um retrato afetuoso de relações “familiares” gentis entre o elenco e a equipe, tornando “A Noite Americana” o completo oposto de “O Despreso”, de Jean-Luc Godard (1963), ou “Beware of a Holy Whore” (1970), de Rainer Werner Fassbinder.

A sabedoria amena e agridoce dá o tom fundamental aqui, enquanto um excelente conjunto de atores (do tranquilo Jean-Pierre Aumont ao estourado Jean-Pierre Léaud) compartilha lições passageiras sobre a vida, o amor e a perda. O filme esboça uma ampla gama de personagens, inteligentemente comparadas em pontos específicos: por exemplo, as suas atitudes perante o sexo casual (trágico e histriônico para a personagem de Jacqueline Bisset, vivendo um casamento feliz, quando Léaud torna pública sua relação; rude para Natalie Baye, uma assistente de direção eficiente).

Truffaut realça a transitoriedade, a fragilidade e a irrealidade da vida em uma locação de filmagem – deixando até mesmo, em uma cena hilária e surpreendente, que um intruso solte o verbo para criticar essa gente de cinema por sua imoralidade desenfreada. “A Noite Americana” expõe de forma carinhosa muitas ilusões do processo de filmagem – como podemos constatar quando o sentido de seu título nos é revelado -, mas mantém a nossa admiração diante da magia dos filmes. Como ocorre em outras obras de Truffaut, as cenas de montagem rápida – dedicadas ao frenesi da sala de edição, ou a complicada cena filmada com neve artificial – exprimem afeto profundo e apreço pelas coisas práticas e mundanas de seu ofício.

Como essas cenas de montagem estranhamente divertidas nos mostram, o cinema de Truffaut é intrinsecamente não-espetacular. Não há qualquer ênfase melodramática neste filme, nem tampouco retórica pomposa para marcar um ponto de vista em sua encenação. Truffaut deseja manter um tom leve, uma narrativa fluida e sua capacidade de comunicar os incidentes com o máximo de economia: nesses pontos realmente foi capaz de unir a concisão controlada de Hitchcock ou Lang com a observação aguda de Renoir ou Becker. Aqueles que não consideram “A Noite Americana” um filme sério estão deixando de perceber a notável realização de Truffaut nesse nível.

Entre a sucessão bem-humorada de situações ordinárias, os raros momentos de drama ocorrem como interrupções súbitas (como a morte de Alexander) que mudam a atmosfera. A tristeza desses eventos “pontuais” realça a transitoriedade dos prazeres dos personagens: momentos secretos de intimidade ou cumplicidade, epifanias alegres, erupções casuais de comédia e beijos roubados. “A Noite Americana” contém algumas das vinhetas mais encantadoras de Truffaut nesse gênero.
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (França). Indicado aos Oscar de Atriz Coadjuvante (Valentina Cortese), Diretor (François Truffaut) e Roteiro Original.

(La Nuit Américaine - 1973)

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