sábado, 28 de maio de 2016

O Grande Mestre (2013)


Quando confrontado por um adversário que despreza o seu estilo de luta, o Wing Chun, caracterizado pela simplicidade e eficiência dos golpes, no qual a defesa é uma forma de ataque e vice-versa, Ip Man (Tony Leung) o rebate, dizendo que “três (truques) são suficientes para cuidar de você”. Tal confiança justifica-se, já que se trata do mestre de Bruce Lee, ator e lutador que ajudou a difundir o kung fu para o mundo a partir de Operação Dragão (1973). Ele é retratado em ¨O Grande Mestre¨ de Wong Kar-Wai. O cineasta passou oito anos de sua vida envolvido neste projeto, entre viagens de pesquisa sobre a vida de Ip Man, semanas de filmagem para uma única cena e muito tempo na sala de edição.

Comparando a obra com as três formas do próprio Wing Chun que ela homenageia, pode-se dizer que ela vacila em uma, mas obtém êxito nas outras duas. A primeira delas, chamada de “ideia”, consiste nos movimentos básicos do estilo, trazendo a essência técnica desse tipo de luta. Cinematograficamente, esta base seria o roteiro e é justamente onde ¨O Grande Mestre¨ derrapa.

Mais do que uma cinebiografia sobre Ip Man, trata-se de um tratado sobre o kung fu, sua propagação na China, indo do Norte ao Sul, suas diferentes escolas, a disputa entre os estilos. É também um panorama da conturbada história chinesa no início e em meados do século XX, através dos olhos de um personagem que passou pelos três principais momentos de mudança no país: o fim da fase imperial da Dinastia Qing e o início do período republicano, quando sua fama nas artes marciais crescia; a invasão japonesa na Segunda Guerra Mundial, em que enfrentou perdas familiares e financeiras; e a revolução que institui a República Popular da China, em que foi obrigado a se exilar em Hong Kong.

As cartelas e a narração em off dos personagens, recurso tão comum nos filmes de Kar-Wai, neste caso servem mais ao didatismo que a trama exige, por sua complexidade histórica. Mesmo assim, o roteiro ainda permanece algo confuso para os espectadores em determinados momentos. Outro problema é que o protagonismo de Ip Man, muito bem defendido por Tony Leung, figurinha marcada nos trabalhos do diretor, é prejudicado pelo script mal construído, que chega a omitir o herói por vários minutos – e vários anos dentro da cronologia do longa. Sobra espaço para Gong Er, interesse romântico do mestre, graças também ao carisma de Zhang Ziyi, atriz de O Tigre e o Dragão (2000).

Como não poderia deixar de ser, Wong Kar-Wai não deixou de falar sobre o amor, especialmente o reprimido. Se a segunda forma do Wing Chun é a “ponte”, em que o praticante deve preencher o espaço entre ele e seu oponente, o diretor usa sabiamente sua experiência em falar sobre o tema para traçar um paralelo entre o amor e o kung fu. A luta dos dois revela toda a tensão amorosa/sexual em ambos os lados.

A chuva da cena inicial já denota que a dor estará presente durante a trajetória do protagonista. Igual aos três certeiros movimentos de mão do estilo usado pelo mestre, conhecidos como “espada”, “alfinete” e “bainha”, as circunstâncias da vida também serão implacáveis na tarefa de atingir o amor de Ip e Gong: as dores da guerra e a honra da família, seja na busca por vingança por parte dela ou na necessidade dele de mantê-la intacta, permanecendo fiel a sua mulher. Assim como em outros trabalhos do diretor, trata-se de um triângulo amoroso, em que o terceiro elemento é uma soma de fatores externos e internos difíceis de explicar, mas que o público compreende – neste ponto, já é perceptível a importância do número três não só para esta luta, mas também para o filme, em que, além das tríades citadas, são enumerados vários conjuntos da mesma quantidade.

Entretanto, como a terceira forma do Wing Chun, que permaneceu secreta durante muito tempo, chamada de “dedos voadores” ou “de dardo” por causa de seus golpes rápidos e certeiros, Kar-Wai acerta completamente o alvo com o apuro técnico e estético da produção. Indicado ao Oscar de Melhor Fotografia e Figurino, com o trabalho de Philippe Le Sourd e William Chang, O Grande Mestre também conta com Yuen Woo-Ping, que coreografou as cenas de luta de O Tigre e o Dragão, da trilogia Matrix e dos dois volumes de Kill Bill. A edição rápida, marca da filmografia do cineasta, continua; mas a montagem prioriza e mescla bem os cortes rápidos e o slow motion, sem os jump cuts e freeze-frames de antes. Tudo isso, somado à edição e mixagem de som, transforma as cenas de luta em um misto de dança e batalha de uma plasticidade e visual incríveis.

Não deixa de ser curioso – talvez, até paradoxal – que o cineasta, reconhecido pela sua primazia na construção de emoções e metáforas através das imagens, se disponha a contar a vida de um mestre que propagou um kung fu mais “limpo” e sem acrobacias, contra variações que tinham, por exemplo, 64 formas de ataque. Na realidade, esta é uma obra em que a disputa de estilos de luta representa o confronto de estilos de cinema, que existe até dentro do ímpeto criativo do próprio diretor. No saldo final, o que se vê, porém, é que Wong ainda não se sai tão bem no procedimento básico de contar a história em si, mas continua sendo aquele ótimo esteta capaz de maravilhar os olhos dos espectadores; tanto os amantes das artes marciais que terão mais uma chance de conhecer Ip Man, quanto o público em geral que, segundo o próprio Kar-Wai, perceberá que o Wing Chun vai além de socos e pontapés.

Nomeado ao Oscar de Fotografia e Figurino.

(Yi dai zong shi - 2013)

Nenhum comentário:

Postar um comentário