quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (2019)


Utopia, como bem se sabe por livros e filme, tem um preço alto que, geralmente, está escondido num porão escuro e úmido. O mal não espera a noite: Midsommar é um filme sobre o boleto que vem junto com a comunidade ideal, que é cobrado em uma única parcela que custa a vida de alguém (ou mais de um). O segundo longa do americano Ari Aster é tudo o que se esperava do diretor de Hereditário – para o bem e para o mal.

À primeira vista, é claramente identificável que Midsommar é uma releitura de O homem de palha – a versão original, de 1973, não a esquecível protagonizada por Nicolas Cage, em 2006. Mas o filme de Aster vai bem além disso. Há algo de bergmaniano aqui, e não apenas pelo cenário no interior da Suécia, mas pela incapacidade do casal central de conversar um com o outro. Há também o estranhamento de Tarkovski, especialmente de O sacrifício, novamente, não apenas por causa da paisagem sueca, mas por conta de eventos que neste filme espelham o do diretor russo.

Midsommar se apoia, ao menos a princípio, em estereótipos de gêneros. Dani (Florence Pugh, claramente uma das melhores atrizes inglesas atualmente) é sempre carente e pegajosa, sempre precisando do namorado Christian (Jack Reynor), um pós-graduando em antropologia em busca de um tema para sua tese. Os amigos dele vivem incentivando-o a terminar o namoro, mas ele tem pena da garota. Até que uma tragédia incomensurável abala a vida dela e ele não tem qualquer condição de a abandonar.

A viagem para a Suécia, no verão local, já estava planejada entre ele e seus amigos há tempos, e Dani acaba indo junto – a contragosto de todos os rapazes, exceto de Pelle (Vilhelm Blomgren), amigo sueco que organiza a viagem e que parece nutrir algum sentimento além de amizade pela namorada de seu colega. Todos vão para a comunidade isolada de Hårga, onde o rapaz cresceu. O grupo é bem recebido e logo estão tendo alucinações com cogumelos que consomem ao chegar.

Durante nove dias, o grupo – que também inclui um afroamericano, Josh (William Jackson Harper), e Mark (Will Poulter) sempre irritado e provocando Dani – acompanhará rituais e mais rituais em homenagem ao Solstício de Verão, além de refeições e mais refeições que se tornam um teste para a paciência do público durante os 147 minutos dofilme. Mas Aster não faz nada gratuito. É preciso perder a noção do tempo – tanto os personagens quanto nós. E, conforme as horas e os dias se diluem, o preço caro da utopia começa a emergir.

A fotografia do polonês Pawel Pogorzelski – também responsável por Hereditário – destaca as paisagens ensolaradas do interior da Suécia (na verdade, da Hungria, onde o longa foi rodado) em contraste com a escuridão e neve dos Estados Unidos, dos primeiros minutos do filme. Há uma imagem sintomática do estranhamento já no início do filme, quando o grupo acaba de chegar ao seu destino e viaja de carro até a comunidade. Enquanto estão numa estrada, a câmera os acompanha por cima, até que, aos poucos, a imagem gira e tudo fica de ponta-cabeça. É bem óbvio o que Aster e Pogorzelski querem dizer com isso mas, ainda assim é uma cena desconcertante pelo senso de vertigem que nos dá.

Dessa forma, Midsommar é algo raro no gênero: um terror (mais para suspense psicológico, na verdade) ensolarado, no qual tudo acontece em plena vista, sem precisar de subterfúgios baratos para dar sustos. Mas Aster é dado a certo sadismo – como já mostrara em seu longa de estreia. Não apenas pelo prolongamento dos rituais e almoços e jantares, mas especialmente pela sua paixão em mostrar o (literalmente) grotesco em closes.

O cuidado na composição das imagens, da narrativa lenta e, aparentemente, na qual nada acontece, ajuda na paradoxal claustrofobia a céu aberto de Midsommar, o que torna impossível não se conectar com Dani em sua jornada a superação do trauma, e porque não, rumo ao empoderamento. Ela é, claramente, a personagem mais bem construída aqui, enquanto os masculinos são rasos, cumprindo mais funções dentro da trama do que representando pessoas de verdade. No fundo, isso não importa, pois a masculinidade tóxica deles é apenas um indício de que talvez sejam apenas descartáveis. Não há propriamente surpresas, pois muitos acontecimentos são antecipados pelos murais espalhados em Hårga, assinados pelo artista sueco Ragnar Persson. Mas ainda assim, o filme é perturbador e angustiante.

É incômodo notar também que todos sejam loiros e loiras de olhos azuis, e heterossexuais. Torna-se impossível não pensar nessa comunidade como eugênica. Josh é o maior elemento de estranhamento aqui, por isso, é significativo quando ele escolhe para sua tese de doutorado estudar o lugar e seus ritos. Midsommar pode significar muitas coisas, mas não deixa de ser uma alegoria da ascensão de regimes totalitários que fazem uma limpeza biossocial em busca de uma sociedade perfeita. Como também se sabe, para uma utopia se tornar distopia não é preciso muito.

(Midsommar - 2019)

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