sábado, 29 de janeiro de 2011

Morte em Veneza (1971)


“Morte em Veneza” é, sem dúvida, um filme de ponto de vista. Encenado pelo olhar de Aschenbach e medido por aproximações e afastamentos de acordo com sua percepção do que o cerca, ele constrói de início uma atmosfera descritiva, que vai dando lugar ao recorte privilegiado de Aschenbach das particularidades do local. Se sua panorâmica de turista recém-chegado captava muito do ambiente do Hotel de Bains e da praia do Lido, logo sua atenção está fixada em seu objeto de adoração apaixonada, o Belo, o rapaz Tadzio e tudo o que o rodeia. Em cada gesto medido de Aschenbach é possível ver o detalhismo de Visconti e sua adesão ao original de Thomas Mann. O que era extensa descrição psicológica e sentimental naquele, ele transforma em devotada expressão pictórica, compondo quadros e movimentos de câmera ensaiados à perfeição. E como prova da contaminação do filme por seu objeto, podemos ver a contenção de Aschenbach, por um lado, e sua fixação apaixonada, por outro, pautarem “Morte em Veneza” do início ao fim. Visconti afirma ter transformado o personagem de Mann de escritor em músico para ser mais fiel ao intencionado pelo próprio autor, que era se aproximar, de alguma forma, da figura do compositor Mahler. Não à toa, Mahler musica veementemente todo o filme. Se Mann manifestava sua profunda compreensão dos dilemas intelectuais-artísticos de seu personagem através da sua própria escrita, Visconti a manifesta através da trilha sonora e da transposição de um personagem extremamente psicologizado para um personagem eminentemente visual. Não acessamos Aschenbach por uma detalhada descrição do seu interior, mas pela observação dos gestos e expressões precisos de Dirk Bogarde e pelo acompanhamento intensivo da música de Mahler.

Dessa forma, vamos acompanhando, em progresso imperceptível, a morte de Aschenbach, embebido da paisagem de Veneza e consumido pela obsessão de perfeição e beleza. Tudo aquilo que ele mais prezava ali, presente demais para um homem já tão fragilizado e debilitado pelo avanço do tempo em seu corpo e seu espírito, tornou inviável o restante do percurso. Ele havia atingido o ponto crítico. Seu modo de vida havia saturado sua própria vida. E o que poderia tê-lo feito recarregar suas energias, seus valores e suas crenças, para caminhar rumo aos seus últimos anos, o fez entrar em colapso e determinou uma impossibilidade de progredir.

Aschenbach morre. Contaminado por sua cidade amada, impregnada de peste asiática, e por seu adorado objeto de veneração, envolto por uma distância intransponível em que apenas massacrantes joguinhos sedutores têm espaço. Mergulhado em delírios e febres próprias de quem é atingido por grave infecção do corpo ou da alma, ele abraça o declínio, transformando-se no patético velho vestido de manequim pasteurizado de homem jovial, que ele mesmo repugnava. Desfalece por fim na praia deserta de turistas evadidos pela peste, no palco que assistiu sua lenta decadência, frente à imagem de seu ídolo venerado, que na mais bela pose de Deus, aponta o infinito, coberto por centelhas de luz emitidas pelo mar que reflete a cegueira emitida pelo sol. Permanecemos nós, com a estupefação de ter presenciado um amor muito intenso sem nenhuma troca efetiva, uma vida tão bem estruturada e tão altiva se esfacelando ante o mais banal, um filme tão belo sobre algo tão horrível...

Indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro.

(Morte a Venezia - 1971)

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